Cenário de Brexit sem acordo a 29 de março sobe na lista das probabilidades. Sobretudo se Câmara dos Comuns não votar ou não aprovar o acordo de saída negociado entre o Reino Unido e a UE. Bruxelas e Londres têm planos de contingência. E os restantes 27 também preparam os seus.
Muita água pode ainda correr, muita coisa pode acontecer ainda e os planos de contingência servirem apenas para uma espécie de efeito de dissuasão. Mas, pelo sim, pelo não, todos preferem estar preparados. O que é que os países, incluindo o próprio Reino Unido, e Portugal, estão a fazer para se preparar para o pior dos cenários?
 
Reino Unido – Ensaio para o caos, debate a decorrer e voto talvez no dia 15
A 81 dias do Brexit, o governo de Theresa May levou adiante um simulacro no qual 87 camiões percorreram 32 quilómetros entre um aeródromo e o porto de Dover, por onde passa 17% das mercadorias do Reino Unido. O objetivo era levar 150 camiões para testar a capacidade das estradas de Kent, mas o ensaio acabou por ser ridicularizado pela oposição. “Esta é uma farsa financiada pelos contribuintes”, disse a deputada liberal-democrata Layla Moran. A ação foi também criticada pela associação do transporte rodoviário de mercadorias (RHA, na sigla em inglês). “O simulacro de hoje não pode replicar a realidade de 4000 camiões retidos no aeródromo de Manston no caso de Brexit sem acordo”, disse o presidente da RHA, Richard Burnett.
 
Os trabalhistas criticaram o governo por este ter adjudicado um contrato de 15,5 milhões de euros a uma empresa sem experiência nem navios para fazer transporte no Canal da Mancha no caso do pior cenário. A empresa em questão, Seaborne Freight, faz parte de um lote de três empresas (a francesa Brittany Ferries e a dinamarquesa DFDS) que o governo contratou por 111 milhões de euros para fornecerem serviços de transporte de mercadorias adicionais. “Um cenário de não acordo seria terrível para as nossas redes de transporte em qualquer circunstância, mas a pura incompetência com que os preparativos têm sido tratados é alarmante ao extremo”, comentou o porta-voz do Labour, Andy McDonald.
 
O acordo do Brexit negociado entre Londres e a UE a 27 ficou fechado em novembro e era para ser votado a 11 de dezembro no Parlamento britânico. Perante a oposição interna, sobretudo dentro do próprio Partido Conservador, a primeira-ministra Theresa May decidiu adiar o voto. E ir à procura de mais garantias dos europeus sobre a questão do backstop. Até agora nada à vista. A Câmara dos Comuns volta ao debate sobre o Brexit na próxima quarta-feira, dia 9, e deve votar – se votar – o acordo, em princípio, no dia 15.
 
“Os cidadãos em primeiro lugar”. Aquela que foi estabelecida como prioridade pela Comissão Europeia na comunicação que fez em dezembro sobre o plano de contingência para um Brexit sem acordo será também a preocupação central do governo português no plano de contingência nacional que apresentar.
 
Segundo disse o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, o plano português será apresentado neste mês mesmo que o acordo atual sobre o Brexit seja chumbado na Câmara dos Comuns ou que a sua votação volte a ser adiada.
Questionado pelo DN sobre se isso será sempre depois de dia 14, data prevista neste momento para o voto, o ministro, falando à margem do Seminário Diplomático, que decorreu na quinta e na sexta-feira, em Lisboa, respondeu: “Mesmo que haja mais algum atraso, com o 29 de março já quase aí, o governo português tornará público o seu plano.”
29 de março é a data para o Reino Unido sair da UE em consequência do resultado do referendo de 23 de junho de 2016 e ativação do artigo 50.º do Tratado de Lisboa (processo que ainda está a tempo de revogar, segundo o Tribunal de Justiça da UE).
 
Santos Silva sublinhou a existência de uma campanha “do Ministério da Administração Interna e do Ministério dos Negócios Estrangeiros para explicar aos cidadãos britânicos residentes em Portugal o que é que têm de fazer para que os seus direitos sejam salvaguardados”.
 
O chefe da diplomacia precisou: “Se eles já tiverem autorizações permanentes de residência, não precisam de fazer nada, estão autorizados a residir em Portugal. Mas se estiverem a residir e ainda não se tiverem inscrito, apresentado, devem fazê-lo.” O ministro deixou ainda a garantia de que tudo tem sido feito, desde a primeira hora, logo a seguir ao referendo, para dar apoio aos cerca de 400 mil portugueses que vivem no Reino Unido. E assegurar que os seus direitos serão salvaguardados depois do Brexit.
 
Na sequência de um projeto de resolução apresentado pelo PSD, o Parlamento português debaterá o tema do plano de contingência no dia 17, confirmou ao DN a vice-presidente da bancada parlamentar do partido Rubina Berardo. Nesse dia, estará em Portugal Michel Barnier, negociador chefe da Comissão Europeia para o Brexit. Irá ao Conselho de Estado, presidido por Marcelo Rebelo de Sousa.
 
Apesar de não se conhecer o conteúdo detalhado do referido plano, documentos entretanto elaborados dão pistas. Um relatório da CIP, apresentado em outubro, prevê uma quebra de 26% nas exportações portuguesas para o Reino Unido num Brexit sem acordo e lista como setores mais sensíveis o dos produtos informáticos, eletrónicos e óticos, equipamentos elétricos, veículos automóveis e semi-reboques. As regiões do país mais sensíveis no setor produtivo são Alto Minho, Cávado, Tâmega e Sousa e Ave. E no setor dos serviços (sobretudo o turismo) as da Área Metropolitana de Lisboa, Algarve e Madeira. Quarto destino das exportações portuguesas, diz o relatório de 120 páginas, o Reino Unido está no quarto lugar dos países de investimento direto em Portugal e é o terceiro principal país de origem das remessas dos emigrantes.
 
No quadro das iniciativas, a AICEP tem realizado seminários que abrangem setores como o alimentar, o automóvel, o da saúde ou o da banca e do turismo (estes últimos previstos para este ano). Segundo a agência Bloomberg, Portugal, onde agora foi anunciada uma greve de seis meses pelos estivadores, não tinha previsto aumentar o pessoal das alfândegas qualquer que seja o Brexit, tanto no porto de Lisboa como no de Sines. No quadro das oportunidades, Sines poderia vir a receber o gás natural liquefeito dos EUA para a UE.
 
O governo criou já o Portugal In, destinado a atrair negócios afetados pelo Brexit (embora haja concorrentes de peso, como França, Alemanha, Irlanda e Holanda.
 
Irlanda – Evitar a todo o custo o regresso de uma fronteira física
 
A República da Irlanda é talvez o país que há mais tempo se prepara para o Brexit. A grande questão é evitar a todo o custo o regresso de uma fronteira física entre as duas Irlandas: a República da Irlanda (Estado independente e membro da UE) e a Irlanda do Norte (província autónoma parte do Reino Unido). Daí que o ponto relativo ao backstop, mecanismo de salvaguarda para evitar essa fronteira contido no acordo final do Brexit, seja o que mais controvérsia suscita.
 
O ministro das Finanças irlandês já anunciou um fundo de 300 milhões de euros para ajudar os setores da economia e empresas mais afetadas pelo Brexit. Além disso, Dublin planeia contratar mais mil agentes de alfândega, construir mais infra-estruturas portuárias e transferir reservas de 200 mil toneladas de petróleo do Reino Unido para outros Estados da UE.
Espanha – Dois problemas: um chama-se Iberia, outro Gibraltar.
 
O governo do PSOE, fragilizado por falta de maioria parlamentar e com dificuldades em aprovar o Orçamento, tenciona apresentar neste mês o plano de contingência espanhol para um cenário de Brexit sem acordo e aprová-lo, em fevereiro, por via de decreto, confirmou o próprio primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez. Espanha, como Portugal, dá prioridade à situação dos cidadãos, uma vez que há 116 mil espanhóis no Reino Unido e Espanha tem a maior comunidade de britânicos da UE (300 mil).
 
No plano da aviação, Madrid tem um problema chamado Iberia, companhia integrada no grupo britânico IAG, que com o Brexit passaria a ser extracomunitária. E Espanha quer blindar o setor do turismo de eventuais perturbações. O comércio preocupa mais do que o setor financeiro, dado os preparativos feitos neste último campo pela Comissão Europeia e os próprios bancos. Os controlos alfandegários aumentarão se o Reino Unido (quarto destino das exportações espanholas) não for mais da UE. Gibraltar, questão espinhosa, será tratado com base nos acordos bilaterais Espanha-Reino Unido em caso de saída sem acordo.
 
França – Aprovada lei que permite ao governo medidas de emergência
O Parlamento francês aprovou no dia 10 de dezembro, à noite, uma lei que dá ao governo o poder de introduzir medidas de emergência por decreto para mitigar as consequências de uma saída do Reino Unido da UE que não seja regida por qualquer acordo. Nessa mesma noite, Theresa May adiava a votação do atual acordo do Brexit, por falta de apoio, estando esta prevista agora para dia 14. O caso não é para brincadeira: as exportações para o Reino Unido são 3% do PIB de França. Se houver Brexit sem enquadramento, o tráfego aéreo poderá ficar paralisado, o comboio Eurostar poderá não ter as suas licenças francesas reconhecidas pelos britânicos… Os serviços alfandegários franceses anunciaram a contratação de mais 700 funcionários até 2020. Segundo o seu site oficial, 120 recrutamentos destinados a esse fim tiveram lugar em 2018.
Alemanha – Avisos e cautelas, mas à espera de ver o que ganha Frankfurt
 
A Alemanha tem mantido um low profile na discussão ou divulgação pública dos seus preparativos para lidar com um Brexit desregulado ou desordenado. O ministro das Finanças alemão, Olaf Scholz, tem avisado repetidamente as empresas e os bancos para não subestimarem os riscos associados à saída do Reino Unido da UE e prepararem-se para quando o Dia D chegar.
 
Sendo a Alemanha a maior economia da UE e o maior parceiro comercial do Reino Unido, também Berlim aposta na contratação suplementar de funcionários, acautelando qualquer relação futura menos aberta a nível económico com os britânicos. Porém, também a Alemanha pode ganhar com o Brexit, se bancos e empresas substituírem Londres por Frankfurt como capital financeira da Europa. Segundo cálculos do grupo de lóbi Frankfurt Main Finance, citados pela CNBC, a City pode perder até 800 mil milhões de euros para a Mainhattan.
 
Com o governo em funções, depois de o primeiro-ministro Charles Michel se ter demitido no meio de uma polémica sobre o Pacto Global da Migração da ONU, a Bélgica encontra-se numa situação que, embora não seja inédita, a deixa algo fragilizada para receber as ondas de choque do Brexit. Seja ele com acordo, sem, ordenado, desordenado ou outro… Abrigando o segundo maior porto da UE, o de Antuérpia, a Bélgica está a investir em drones e scanners submarinos para monitorizar a costa e o mar do Norte, noticiou a agência Bloomberg.
 
Haverá mais cães treinados para detetar drogas e dinheiro, enquanto o número de funcionários das alfândegas, atualmente situado nos 3400, será aumentado em 141 novos agentes até abril. O número total de pessoas recrutadas de forma adicional dependerá do desfecho do Brexit, disse, em resposta a perguntas da Bloomberg, Florence Angelici, uma porta-voz do Ministério das Finanças da Bélgica.
 
Holanda – Reforço de pessoal para não parar o maior porto da UE
A Holanda tem o maior porto da Europa, em Roterdão, e por isso, precavendo o impacto do Brexit, os serviços alfandegários aumentaram o seu staff de cinco mil para seis mil funcionários. Também a autoridade responsável pela segurança alimentar holandesa vai reforçar o pessoal. A Holanda é o segundo parceiro comercial do Reino Unido, mas não está focada só no que perde. Mas também no que pode ganhar.
 
A Agência Europeia do Medicamento, que sairá de Londres, passará para Amesterdão (o Porto também se candidatou mas perdeu). O governo holandês, refere a BBC, quer acautelar qualquer escassez de medicamentos e equipamentos médicos. O Royal Bank of Scotland prepara-se para transferir um terço dos seus clientes da área da banca de investimento e milhões de ativos do Reino Unido para a Irlanda.